"Vejo pouca gente da Igreja a defender os direitos humanos" D. Januário Torgal Ferreira - Bispo
"Vejo pouca gente da Igreja a defender os direitos humanos"
joão girão
"Todos os princípios que recebi são de Direita. Só despertei para os ideais de Esquerda aos 20 anos"
O bispo das Forças Armadas, Januário Torgal Ferreira, decidiu que queria ser padre muito cedo, aos sete anos. Entrou no seminário aos 10, de onde só saiu aos 22. Em Maio de 1968 estava em França a estudar filosofia com Paul Ricoeur. Aí viveu tempos intensos de debate social e político, bem como eclesial. Para o prelado, que esteve recentemente em Roma, a Igreja portuguesa tem de mudar. Muito.
JN Antena 1Disse uma vez que uma das tragédias em Portugal era a Igreja ser só da e para a Direita. A Igreja em Portugal não está totalmente aberta?
D. Januário Torgal Ferreira Não, a Igreja em Portugal é totalmente conservadora.
De Direita, portanto.
De Direita nesse sentido. Por isso é que o Papa diz que isto tem de dar uma volta. Pois tem. A mentalidade... Por que é que não se fala do desemprego, da violência contra as mulheres, das purgas contra as crianças, da pouca vergonha instalada na Justiça?
Posso perguntar a um bispo se é de Direita ou de Esquerda?
Costumo dizer eu sei como voto. Venho da Direita. Todos os princípios que recebi são de Direita. Só despertei para os ideais de Esquerda, da justiça social, a partir dos meus 20 anos. São os ideais de justiça social, de solidariedade que competem à Igreja. A Igreja tem coisas fantásticas, de amor, de devoção, de entrega. Mas, não tenhamos medo de dizê-lo: vejo pouca gente da Igreja a defender os direitos humanos. Há, mas pouca.
São os silêncios de que tem vindo a falar?
Sim. Prefiro a ruptura, a discussão. Espero frontalidade, mas, habitualmente, o que se usa é o truque, a hipocrisia.
Viu luz no que o Papa disse aos bispos?
Vi, claro. Ele disse uma coisa muito importante, que é que isto tem que dar uma volta. A Igreja tem de dar uma volta. Também ele, o Papa, em muitas coisas deve dar uma volta.
Que volta? Comecemos pelo Papa antes de falarmos da Igreja portuguesa.
Nós deveríamos ser muito mais escutados por Roma; não deveria haver centralismo. Deveria haver muito mais comunhão. Deveria mudar a apresentação. Deveria haver uma Igreja - não vou advogar que se venda o Vaticano, não sou iconoclasta - diferente na nossa presença, até na forma de vestir, na casa em que habitamos, o carro, o secretário, a corte. Tudo isto deveria mudar. Deveríamos ser muito mais naturais, cidadãos mais próximos e deixar aquilo que vem de outras épocas que não deve ser destruído, mas devemos viver em situações normais.
Seria mais útil?
O próprio Vaticano poderia entregar as coisas que lá tem. Mas eu refiro-me a cada um de nós, bispos, padres. Há pessoas que têm sempre de mudar de carro, comprar o melhor andar... Num país de dois milhões de pobres... A democracia portuguesa está doente. E eu pergunto, a Igreja diz isto? Não diz! Está a ver a mentalidade triste, num apagado e triste país.
O dinheiro da basílica de Fátima bem podia ter sido empregue noutra coisa...
Alguém me disse que a igreja vai nascer do dinheiro dado pelos peregrinos; que é para eles se abrigarem no Inverno e no fim do Verão. Só que acho que no Inverno não há nove mil peregrinos no santuário de Fátima (...). Seria tão exemplar criar novas mentalidades - sem discursos do púlpito, como eu estou aqui a fazer, que é muito fácil - para obras sociais mais necessárias. Privilegiaria crianças ou idosos... Aquilo que acho que falta em Portugal, a partir da Igreja, é humanidade.
Estranhou que o Papa citasse o Vaticano II?
Não, o Papa, no fundo, também cita os bispos.
No Vaticano II, defendeu-se o recurso a métodos artificiais para controlar a reprodução. Essa parte não está no discurso do Papa.
Não, infelizmente não foi aceite pelo Papa Paulo VI.
Para a Igreja, é pecado. Para si, não é?
Para mim, não é. Para mim, é um instrumento de defesa. Para mim, é um elemento promotor da vida, uma forma civilizada e inteligente de proceder.
Acha que a Igreja portuguesa pode dar a volta que o Papa pediu?
Temos pernas para andar. Teremos de ter humildade de executar, de aplicar, às vezes, coisas simples, decisões que se assumem. A Igreja foi conivente com o regime de Salazar, é coisa que a gente tem que dizer. Não é pedir perdão - que pedir perdão é mudar a nossa vida. Mas a Igreja tem responsabilidade, porque a Igreja é, de facto, Jesus Cristo...
Vamos ter de terminar. O senhor escolheu o requiem de Mozart para terminarmos esta conversa. Posso perguntar porquê?
Para mim, a morte faz parte da vida. A morte é a ressurreição que eu gostaria que começasse aqui, na Terra. A ressurreição seria o caminhar mais rápido do caminhar mais lento. Mas tudo o que eu fiz na Terra seria em ordem a derrotar estes fenómenos vergonhosos da morte que nós temos.
Entrevista no Jornal de Notícias
Também gosto muito do Requiem de Mozart e agora fiquei a gostar de D. Januário Torgal Ferreira