O poeta, o pregador e a esperança - Frei Bento Domingues O.P.
In: Jornal Público
09.12.2007, Frei Bento Domingues O.P.
Os cristãos devem acolher-se uns aos outros, como Cristo os acolheu
1. Diz-se que na Bíblia há textos para tudo e para o seu contrário. Coexistem, nela, os mais belos e os mais insuportáveis, por vezes nas mesmas passagens. Como aparece editada num só volume - que, no espaço francófono, pode ser agora adquirida por 1,50 euros -, é fácil esquecer que se trata de uma biblioteca, composta de muitos géneros literários, reflectindo muitas épocas, muitas problemáticas, interesses e tradições. Não é um catecismo nem um livro caído do céu, alérgico à investigação das ciências humanas. Em 1993, a Comissão Pontifícia Bíblica reconheceu, num documento notável, que ela pode ser estudada por uma pluralidade de métodos e abordagens (1).
Queixamo-nos, por vezes, do excesso de textos bíblicos, em cada domingo, para celebrar o sacramento "do corpo e do sangue", sacramento da misteriosa vida de Deus e da nossa. No entanto, as diferentes perspectivas que apresentam contribuem para salvar a comunidade católica de tentações fundamentalistas, reduzindo a Bíblia a certos textos escolhidos a dedo.
2. Essa diversidade está presente nas passagens bíblicas deste domingo. O primeiro é um poema do profeta Isaías, de há 2800 anos, e como poema deve ser saboreado:
"Sairá um ramo do tronco de Jessé e um rebento brotará das suas raízes. Sobre ele repousará o espírito do Senhor: espírito de sabedoria e de inteligência, espírito de conselho e de fortaleza, espírito de conhecimento e de temor de Deus. Não julgará pelas aparências nem decidirá pelo que ouvir dizer. Julgará os pobres com justiça e com equidade os humildes do povo; com o chicote da sua palavra atingirá o violento e com o sopro dos seus lábios exterminará os malfeitores. A justiça será o cinto dos seus rins e a lealdade circundará os seus flancos. O lobo viverá com o cordeiro e a pantera dormirá com o cabrito; o bezerro e o leãozinho andarão juntos e um menino os conduzirá. A vitela e a ursa pastarão juntas, suas crias dormirão lado a lado; o leão comerá feno como o boi. A criancinha brincará à beira do ninho da cobra e o menino meterá a mão na toca da víbora. Não mais praticarão o mal nem a destruição em todo o meu santo monte. O conhecimento do Senhor encherá o país, como as águas enchem o leito do mar. Nesse dia, a raiz de Jessé surgirá como bandeira dos povos, as nações virão procurá-la e será gloriosa a sua morada" (Is 11, 1-10).
Ninguém espera daqui uma informação científica acerca do futuro, uma proposta ecológica nem um retrato antecipado do Messias, embora os cristãos procurem nele energia para desejar o Natal de um mundo novo, um mundo de novos céus e nova terra, como canta o Apocalipse. É o excesso da palavra poética que transforma, em esperança, o mito do paraíso perdido.
3. Depois desta linguagem da harmonia, vem a do contraste abrupto (Mt 3, 1-12). Para João Baptista, homem austero do deserto, os pecadores são uma "raça de víboras". Ele é a figura do moralista ameaçador com o machado e o fogo da ira de Deus: ou te convertes ou morres.
Que vem ele fazer ao Novo Testamento, ao Evangelho da pura graça de Deus? Porquê tanto vinagre, quando é anunciado o vinho da alegria?
Se consultarmos S. Lucas, veremos que o contraste é a essência da sua narrativa. É o próprio Jesus, que muito admirava o homem do deserto, de quem foi discípulo e por quem foi baptizado, que insiste na ruptura: "Digo-vos que, dentre os nascidos de mulher, não há ninguém maior do que João; mas o menor no Reino de Deus é maior do que ele" (Lc 7, 28-30).
Tanta era a diferença, que Jesus acabou por se separar do seu mestre e seguiu outro caminho: não conseguia anunciar o "dia da ira de Iavé". Não vinha para meter medo, mas para abrir, na nossa história, o caminho da alegria.
S. Paulo, conhecido pela sua polémica entre o regime da Lei e o da Graça, não quer, no entanto, abolir o Antigo Testamento (Rm 15, 4-9). Tudo lhe serve para a sua inovação radical. Para este judeu de cultura rabínica e greco-romana, Deus não tem pressa em castigar, mas em consolar. Os cristãos devem acolher-se, uns aos outros, como Cristo os acolheu. Deus é Deus dos judeus e dos gentios, não faz acepção de povos nem de pessoas.
No passado, pelas mais diversas razões, as diferenças entre espiritualidades, movimentos e religiões serviram para atiçar rancores e violências. Hoje, o chamado diálogo inter-religioso tende a uma justaposição de discurso de boas maneiras. É urgente escutar todas as vozes, mesmo a daqueles que se mostram empenhados em negar espaço às vozes da fé ou da irreligião. Comecemos o tempo no qual, agnósticos, ateus e religiosos saibam alimentar, a partir das suas diferenças, a esperança de que é possível trabalhar por um mundo de todos e para todos, sem miséria e sem ameaças bélicas e ambientais.
O Papa acaba de escrever sobre a esperança. Cada um de nós, se quer falar de esperança aos outros, tem de perguntar a si mesmo: afinal, qual é a minha esperança?
(2).(1) A Interpretação da Bíblia na Igreja, Rei dos Livros, Lisboa.
(2) Guy Coq, Fala-me da Tua Esperança, Âmbar, Porto.
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