Retiro na cidade - 26
A Palavra de Deus
«Eu aqui morro de fome»
Evangelho segundo São Lucas, capítulo 15, versículo 17
Ser e ter
Hoje lemos um dos best sellers da literatura evangélica. Conhecido pelo nome de Parábola do Filho pródigo, poderia também chamar-se «parábola do filho mais velho desmancha-prazeres» ou ainda «a fábula do pai incompreendido».
Esta história bem conhecida de um pai com os seus dois filhos infelizes…conhecemo-la muito bem porque de facto esta história é um pouco a nossa. Com efeito é a nossa história e a de Deus. Tudo é dito: os nossos desejos e o seu amor, os nossos medos e a sua presença, as nossas revoltas e a sua paciência, a nossa liberdade e a sua espera, a nossa loucura e a sua incrível misericórdia, a nossa depressão possível e sua distância de todos os abusos de poder…
O Pai é aquele que dá. Ele partilha tudo com os dois filhos. Para cada uma das suas fomes pressentimos que ele tem um alimento, para cada uma das suas feridas, um remédio. As suas mãos não retêm nada. Tudo que ele tem é deles. Ele é um pai pródigo. Ele apenas sabe dar.
O mais velho está instalado no seu papel, na sua responsabilidade de primeiro. Ele tomará a sucessão, a direcção dos negócios. Sem dúvida faz tudo para corresponder, pensa ele, ao que se espera dele. Ele preocupa-se muito com a sua imagem. Não se arrisca. Não transgride. Ele é um conservador sem dúvida muito atento à sua imagem social, familiar e talvez mesmo religiosa. Vemo-lo no fim da história, incapaz de partilhar a felicidade dos seus, amargo e dobrado sobre si mesmo. Ele não suportará o acolhimento que será feito ao seu irmão.•
O mais novo: ele não pode rivalizar; o mais velho pressiona-o demasiado. É ultrapassado. Poderíamos dizer que tem apenas duas escolhas: ou ser submisso ou rebelde. Talvez ele se sinta oprimido por tanta generosidade da parte de seu pai? É possível que ele enfrente um amor que o esgota. Ele depende em tudo de seu pai. Ele sente que não é nada. Ele precisa de provar a sua existência, encontrar a sua própria identidade. O mais velho: sério, submisso, seco, eu lamento-o! O mais novo: revoltado, estroina, sensível, gosto dele! Neste texto existe um paradoxo. Os dois rapazes são infelizes porque são profundamente amados. Esta diferença profunda entre a realidade e o que sentimos, nas relações de amor, é talvez a nossa.
O filho partiu. Ele escolheu apenas arriscar. Ele coloca-se fora do alcance e o pai já nada pode fazer por ele. Ele não o retém – como nunca reteve nada. Ele até dá ao seu filho tudo o que ele exige: uma parte da herança. Eis o rapaz sozinho face a si próprio, longe da sombra paternal. Ele tem o seu bem. Ele tem confiança nas coisas. Isso tranquiliza, as coisas! Ele entra na adolescência; ele instrui-se. Ele decifra a sua humanidade e as suas horas são ricas. Todas as nossas horas de travessuras, de depressões, de rupturas podem ser ricas. Ele sente que existe e que é cinzento. Ele sente o homem que nasce em si mesmo. Passa do ter ao ser. O seu combate é real. Ele enfrenta ainda as suas memórias. Ele lembra-se que mesmo que estivesse num casulo fechado, ele teria o afecto familiar. Ele toma consciência quanto mais certezas tem mais só está. Uma fome instala-se para não lhe dar repouso. Ele existe mas para ninguém. Pode alguém estar tão só? Entrando então em si mesmo, ele abandona a luta e pode fazer projectos. Sim ele perdeu muito mas ele é um homem vivo, que se levanta e que tem um futuro. Por isso ele deverá amaciar-se e reconhecer justamente aquele que o criou e que lhe manifestou a sua ternura. Ele não faz marcha-atrás. Ele começa uma viagem de regresso que aqui será uma conversão. De volta a casa ele não será mais o mesmo. Ele poderá apreciar a paz e a alegria de uma felicidade que ele não soube ver.
A rotura, a errância, a solidão, a perca, o naufrágio, a depressão, são momentos onde é possível humanizarmo-nos por pouco que tentemos ser nós próprios. O caminho do mais novo reitera-nos que todas as nossas horas podem ser ricas. Pelo contrário, a ausência de risco assumida pelo mais velho, que lhe atravessa a existência aparentemente sem se questionar, estreitando o olhar. A peregrinação interior aumentou o desejo do mais novo, e é apesar de tudo tão grande quanto o tamanho dos braços que o pai que irão estreitá-lo.
A nós cabe-nos não deixarmos desertos os caminhos interiores! A nós também um futuro abre-se!
Traduzido de: http://www.retraitedanslaville.org/
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