quinta-feira, 6 de março de 2008

Sobre o Inferno- Daniel de Sá


Sobre o Inferno(Que diria o padre António Vieira a respeito das declarações de Bento XVI acerca do Inferno e das reacções que se geraram por causa delas? Talvez algo não muito diferente do que aqui se diz, embora mais bem dito, sem dúvida alguma.)



“Ecce Agnus Dei, ecce qui tollit peccatum mundi.” Assim S. João Baptista apresentou Cristo aos penitentes que acudiam ao baptismo a pedir perdão das suas culpas. “Eis o Cordeiro de Deus, eis aquele que tira o pecado do mundo.” Porém eu vos digo que grande mal houvera Cristo de trazer à humanidade se viera para tirar os pecados do mundo. Porque já as más acções não levariam ninguém ao Inferno, nem por míngua das boas se não iria ao Céu. Vedes mais desconcerto do que se assim fosse? Porque é tão desgraçada a condição da alma humana que, se com grande temor não é imposta a lei, é o mesmo haver lei como não haver. Pois se com haver a lei de Deus, que tem promessas de Céu e ameaças de Inferno; e se com haver a lei humana, que tem justiças de cadeias, e de prisões, e de açoites, e de forca, e de muitos outros e variados tormentos, não há bondade nos homens ou se não toleram uns aos outros, que seria do mundo sem justiça divina nem lei humana? E se é certo que desta pode fugir o criminoso, à de Deus jamais nunca há-de fugir. Porém não falta quem viva como se, por não ver Deus enquanto faz o mal, não fosse visto por Ele. Néscios somos, que tão ligeiramente levamos as coisas desta vida, com risco de tão pesadamente sofrermos as da outra. E isto que uma é breve, e logo se acaba; e a outra é eterna, e nunca finda.


Mas será que Cristo não tira ao mundo os pecados, tal como disse S. João Baptista? Ora o santo profeta, inspirado por Deus, certamente não se enganou. Porém há uma condição para que Cristo perdoe os nossos pecados, e assim no-los tire da alma, e do mundo porque dela os tira. “Remittuntur ei peccata multa, quoniam dilexit multum.” Muitos pecados lhe são perdoados, disse Cristo da mulher que Lhe lavou os pés em casa do fariseu, porque muito amou. E este é o preço por que Cristo tira o pecado do mundo, que o não faz somente pelo seu sangue senão que nos pede também a nossa parte, que é o amor. Porém outra condição há para que Deus perdoe os pecados dos homens. Mas não de todos, senão de alguns. “Pater, dimitte illis; nom enim sciunt quid faciunt.” Já moribundo estava o Cordeiro Divino quando pediu ao Pai que perdoasse aqueles que O matavam, porque não sabiam o que faziam. Ergo, Deus não perdoa de qualquer modo, senão que o faz por duas razões: ou por amor ou por nescidade. Porque néscio não é mais nem é menos do que aquele que não sabe. “Nesciat sinistra tua quid fasciat dextera.” Vedes? Não saiba a tua esquerda o que faz a direita. Mas se aqui se louva que tão caladamente se faça o bem que nem saiba a mão esquerda o que a direita faz, não saber as coisas de Deus só pode ser louvado pelo Demónio. Será justo, pois, que aqueles que não quiseram saber de Deus enquanto não podiam vê-Lo, como se não lhes bastasse ver Cristo em cada um dos irmãos, O vejam quando já sabem que é isso a felicidade eterna? Certamente que não, irmãos. Tratai pois de saber quanto podeis e de amar como deveis. E assim vos não há-de consumir o temor do Inferno nesta vida nem o de não ver Deus na eternidade. Que esta cegueira, ou frígida ausência, é o único fogo que há no Inferno, e não outro.


Daniel de Sá

5 comentários:

Anónimo disse...

Lindo este texto do Padre António Vieira...
Os pecados do mundo são tirados pelo Amor.

Maria

Anónimo disse...

Dado o lapso cometido,reformulo o comentário

Lindo este texto de Daniel de Sá ,ao jeito de Vieira.

Os pecados do mundo são tirados pelo Amor.

Maria

Anónimo disse...

Ao Daniel que só não é de Vieira por pormenores, essencialmente intenerantes, pois se um cresceu em aventuras, do outro o crescimento não necessitou de ser tão aventureiro mas, mesmo assim, Vieira que não foi Daniel mas que podia ser aluno/professor ou dupla de sucesso em campos de edição literária ou, simplesmente, deixem ficar como está, Vieira da história e da literatura, Daniel do presente que é da história e literatura.

Como lugares pequenos de "Danieis" provocam fontes de rebentos tão grandes como Daniel que é de Sá? Que Maia é essa?

abraço,

ladoalado disse...

Este texto dá-me muito que pensar, porque, sendo um texto de época, me parece um tanto desajustado à evolução natural ddos conceitos.
Nele, o Céu e o Inferno são lugares, para onde se vai mercê da justiça divina, feita tendo como meta premiar os "bons" e castigar os "maus" (e não digo pecadores, pois isso todos o somos...).
Assim sendo: é o medo que mantém a fidelidade humana, já que à justiça divina ninguém escapa.
Mas hoje sabemos que as acções humanas são censuradas por um de dois "locus de controle": um é o locus de controle externo, as leis que nos limitam, impostas do exterior - a lei do "pecas, pagas", está entre elas; o outro é o locus de controlo interno, conjunto de normas, princípios e valores interiorizados pelos quais a pessoa se orienta - o valor inestimável de Deus e o Amor a Ele dita a lei "não faço porque não quero ir contra esse Amor".
Logo, o Amor é o maior das aspirações, e a ausência desse Amor a maior das falências.

Os pecados do mundo (aqueles que acontecem com "perfeito conhecimento" e "completo consentimento") são perdoados pelo Amor, numa lógica do Amor que nos supera...mas será por amor do mesmo Amor que nos esforçaremos por evitá-los e deles nos penalizamos, na nossa fraqueza, procurando o perdão, não por mira de um prémio ou terror de um castigo.
Ou não será?

Lila

Rui Melgão disse...

Esta é uma questão muito complexa, a do inferno e a do céu... Eu próprio já dei comigo a pensar que posso pecar à vontade porque Deus vai perdoar, porque Deus é bom. Analisando melhor percebo que o inferno não é tanto um lugar, mas mais um estado de espirito, o inferno somos nós que o criamos no nosso interior de cada vez que nos afastamos do abraço do Pai, o inferno é não ver um sentido, o inferno é viver amargurado na revolta de Deus não ser o que nós gostariamos que fosse. Na minha pouca experiência teológica vejo o inferno como algo que vivo todos os dias, pois o inferno esconde-se em cada amarra que não me deixa ser livre para amar. No dia a dia estamos sempre nesta corda bamba, entre o inferno e o céu, entre a procura da felicidade no egoismo e a procura da felicidade no amor...