domingo, 8 de março de 2009

Imagem retirada da net
Proposta de retiro quaresmal dos Dominicanos de Lille

A palavra de Deus

5Tomando a palavra, Pedro disse a Jesus: «Mestre, bom é estarmos aqui; façamos três tendas: uma para ti, uma para Moisés e uma para Elias.»
6Não sabia que dizer, pois estavam assombrados
. Marcos 9, 5-6 (Bíblia dos Capuchinhos)

Eu sei bem que tu me amas

A meditação

A transfiguração é na vida de Jesus um acontecimento fora de série, um acontecimento diante do qual é difícil não partilharmos da mesma admiração e do mesmo medo que sentiram os discípulos. Havia razão suficiente para perderem toda a postura. Tanto mais se sentirmos essa convulsão no nosso encontro com Deus.

Esta segunda semana de quaresma é talvez marcada para nós por esta perda de referências, esta convulsão na vida espiritual. Primeira semana: aí vamos nós, com o coração valente, cheio de energia. Tudo está bem. Depois chegam as primeiras desilusões, a impressão penetrante do tempo que passa demasiadamente lento e sobretudo a ausência de recompensa para os esforços bem intencionados. Esperará Deus outra coisa de nós ?

Eu gostaria de partir da palavra de Pedro relatada no evangelho para mostrar que a perda de referências faz parte do encontro com Deus. Ainda mais, ela não pode ter lugar sem «Mestre, que bom é estarmos aqui; façamos três tendas: uma para ti, uma para Moisés e uma para Elias.»
É simpático Pedro ter distribuído as tendas. Simpático porque completamente escalonadas. O evangelista não se priva de sublinhar: «de facto, ele não sabia o que dizer tão grande era o seu assombro». Que contraste entre o que diz Pedro e o que ele sente. «Que bom estarmos aqui?» pode aparecer quase como delicado, como se ele dissesse «mas claro, mas claro, estamos tão bem com vocês os três» mas quando na realidade, «tão grande era o seu medo»!

Dir-se-ia que Pedro fala a Deus por falar, para encher a conversa, sobretudo para não dizer que é ele quem está com medo. Não procuraria ele desajeitadamente esconder-se?
«Sabes bem que eu te amo» responderá por três vezes Pedro a Cristo que lhe perguntou «Pedro, amas-me mais do que me amam esses outros aqui?» depois da ressurreição, depois da sua tripla negação (Evangelho de João, Capítulo 21)
«Tu sabes bem que te amo». Frase terrível, que poderia soar quase como um censura- «mas enfim, tu sabes perfeitamente»- Se nós não sentíssemos que a frase mesma está impregnada de uma tristeza insondável pela visão humana. «Tu sabes bem que eu te amo», mas eis que tu sabes também que eu te reneguei. A tua pergunta vai buscar-me ao mais negro e mais perdido de mim mesmo.

O texto original do evangelho, em grego, é ainda mais terrível. A tradução francesa traduz sem diferença os dois verbos diferentes para designar o amor que é pergunta na pergunta de Cristo e na resposta de Pedro. Um só verbo em francês para amar, quando há dois em grego, um para designar amor forte, exclusivo e um outro para designar um amor mais banal. Simplificando, e colando ao texto poderíamos traduzir assim:
- Pedro, tu amas-me ?
- Tu sabes bem que gosto muito de ti.
Terrível a resposta de Pedro, de um homem que já não procura nem fugir, mudar. «Sim, eu gosto muito de ti», quer dizer «não muito», nada mais do que isto. Imagino um casal em que um dos conjugues diz ao outro «gosto muito de ti». O quê? Só isso? Há razões para a união colapsar.
O diálogo de Jesus e Pedro pode mesmo ser apresentado assim: «Pedro amas-me?»-«Mas tu sabes bem Senhor, tu sabes bem que eu não te amo».

Duas vezes mais, Cristo irá colocar a questão crucial: «Amas-me?» e Pedro irá responder de cada vez que «gosto muito dele». À terceira vez, Cristo irá perguntar tomando o termo que Pedro usou: «Pedro tu gostas muito de mim?» E o evangelista comenta: Pedro fica muito triste porque Cristo lhe põe a questão dessa forma.

A quaresma é talvez, no seu princípio pelo menos, o reconhecimento assustador que simplesmente nós «gostamos muito de Deus», ver que «nós não o amamos». Somos como Pedro, nós não «sabemos muito bem o que dizer», confundidos, voltados diante quem é Deus e quem nós somos, nós diante dele. Esta confusão faz parte da relação autêntica com Deus. Esta confusão do coração desculpado por não amar, este «e não te amo como tu me pedes» que nós podemos provar, quando é assumido, torna possível a nossa própria transfiguração. Ela deixa o próprio Deus amar em nós como devemos amá-lo.

Retomo o meu casalzinho de que um dos conjugues confessava simplesmente «gostar muito» do outro. A salvação de um tal casal não estaria na desculpa confessada desse pouco amor? O conjugue poderia dizer: «minha querida, não te amo muito, amo-te mal, mas apesar de tudo amo-te. Eu lamento o meu pouco amor mas aceita-o apesar disso.»

Quando Deus entra nas nossas vidas ; as nossas reacções nem sempre estão à altura. Será que alguma vez estaremos à altura do amor? Nós não o poderemos estar sem o socorro de Deus. O «tu sabes bem» de Pedro deixa o olhar de Cristo sondar plenamente o seu coração. Este «tu sabem bem» de Pedro vem de alguma forma responder a «ele não sabia o que dizer». Eu, eu não sei, mas tu, tu sabes. Pedro sabe que os movimentos do coração do homem não podem escapar ao seu mestre. Desta vez ele deixa-se amar ele próprio como é, ele o discípulo que ama Deus, que ama mas ainda não está apaixonado.

A nossa quaresma é bem sucedida, uma super quaresma? Um falhanço? Deus sabe-o por nós. A nossa vida cristã, o nosso caminho, a nossa quaresma é de qualquer modo um «Deus saberá», um «Deus sabe onde». Abandonemos hoje toda a presunção de nos colocarnos sobre uma qualquer escala espiritual no nosso amor por ele. Não seremos nós a ir a ele, mas ele que vem até nós.

Pedro, tu amas-me? Sim, senhor, eu sei bem que tu me amas

Sem comentários: